Sobre escrever quando ninguém tá olhando
Escrever, às vezes, é menos sobre o que a gente tem a dizer e mais sobre o que a gente precisa escutar. É como cavar um poço no escuro, com a esperança de encontrar água – mesmo sem saber se ela existe.
Tem dia que a gente cava com fúria, outros com preguiça, outros ainda só encosta a pá no chão e fica olhando o nada, esperando um sinal.
Processo criativo é isso: um pacto com o invisível.
Um compromisso com o vazio.
A gente escreve não porque sabe o que vai sair, mas porque algo insiste em querer sair, mesmo que sem forma, sem começo, sem fim.
E tem aquele momento precioso – raro, mas real – em que o texto começa a escrever a gente. Quando você percebe que não tá mais empurando palavras, mas sendo puxada por elas.
É vertigem boa.
Quase amor.
Mas, na maior parte do tempo, escrever é ficar. Ficar quando a ideia não vem. Ficar quando vem só o clichê. Ficar mesmo sem entender o porquê. Porque tem alguma coisa em nós que só se revela no ato de permanecer.
Escrever é um jeito de lembrar quem a gente é quando o mundo tenta nos esquecer. E também um jeito de esquecer, temporariamente, esse eu que se repete demais. A página em branco não é spo uma tela – é um espelho. Mas também é um oráculo que pergunta: “e se você não fosse exatamente quem pensa que é?”
O processo criativo, esse bicho arisco, não começa quando a gente senta pra escrever.
Começa antes.
No ônibus, na fila do mercado, no cheiro da cebola dourando, no silêncio entre duas mensagens não respondias.
A escrita fermenta.
A gente é que não tem paciência de esperar o tempo da levedura. Queremos o pão pronto, quente, perfumado. Mas o processo exige silêncio, bolhas de ar, descanso.
E quando chega a hora de sentar pra escrever – ah, aí é onde tudo se embaralha. Porque o que tava tão claro na cabeça escapa pelos dedos. O texto não nasceu igual ao pensamento. Ele vem deformado, gaguejando, suado. É frustrante. Mas também é honesto.
Porque ali a gente se depara com o limite do que consegue dizer. E às vezes, nesse limite, acontece mágica. Um tropeço vira verso. Uma pausa vira ritmo. Uma dúvida vira tema.
Escrever não é sobre controlar.
É sobre permitir.
O controle paralisa.
A permissão escancara.
Quando a gente larga a necessidade de ser genial, bonito, coeso – o texto respira. E talvez esse seja o maior segrego do processo criativo: aprender a respirar junto com o que está nascendo, mesmo que doa, mesmo que pareça ridículo. Porque no fundo, escrever é isso: conversar com o invisível. E ter coragem de ouvir a resposta.
E tem mais uma coisa.
A gente acha que escrever é sobre saber. Saber o que dizer, como dizer, pra quem dizer. Mas não é. Escrever é sobre perguntar. Sobre tropeçar no próprio pensamento e deixar isso aparecer no papel. É sobre não saber e, mesmo assim, continuar.
Tem dias em que escrever é só isso: um ato de resistência contra o ruído do mundo. Enquanto tudo grita pra que a gente seja produtivo, certeiro, publicável — a escrita sussurra: “só me escuta”. Nem tudo que nasce da escrita precisa virar algo. Às vezes o que nasce é só você, mais inteira. Ou mais bagunçada, mas de um jeito verdadeiro.
A escrita, quando é viva, não serve a um fim. Ela pulsa porque precisa. Ela acontece porque há um excesso. Um transbordo. Uma inquietação que não cabe em mais lugar nenhum. E quando a gente escuta esse chamado e se permite sentar, mesmo sem rumo, mesmo sem fé… alguma coisa se move.
Mesmo que não seja bonito. Mesmo que não seja útil. Mesmo que ninguém leia.
Principalmente se ninguém ler. Porque há algo sagrado em escrever só por escrever. Em confiar que o gesto, por si só, já é transformação.
Então se você tá aí agora, lendo isso, talvez seja hora de escutar a pergunta que te visita quando tudo silencia: “o que em mim ainda não foi dito?”
Não precisa ter resposta. Só escuta.
A página espera.